O TRATAMENTO TÉCNICO DA SEÇÃO MUSICAL DO FUNDO CAPELA REAL E IMPERIAL DO ARQUIVO DO CABIDO METROPOLITANO DO RIO DE JANEIRO

André Guerra Cotta


No primeiro contato com o Arquivo do Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro, em meados de 2004, encontramos o material abrigado em quatro armários de aço, que, para fins de referência, numeramos de 1 a 4. O último deles demonstrou ser de especial importância do ponto de vista especificamente musical, já que guardava, entre outros poucos documentos, a quase totalidade dos manuscritos e impressos musicais utilizados nas funções da Capela Real e Imperial, foco original deste projeto. Como mostra a figura 1, trata-se de um armário com quatro prateleiras horizontais (cinco, se a base for contada como uma prateleira), sobre as quais os documentos estavam dispostos em colunas quase regulares.

Com base nesta estrutura, foi criado um código de localização assinalando, nesta seqüência, armário, prateleira, coluna (pilha) e item documental. Por exemplo, o código A4P2C1I01 designa o armário 4, prateleira 2, coluna 1 e item 1. O respectivo manuscrito está apontado na figura 1.



Figura 1 - Arquivo do Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro, armário 4 (julho de 2004).

Figura 2 - invólucro anteriormente utilizado (fragmento), com anotações.

Este material encontrava-se embrulhado em papel ácido (figura 1), do tipo Kraft, nada recomendável do ponto de vista da conservação. Na parte externa dos embrulhos existiam anotações relativamente recentes, descrevendo o conteúdo de cada pacote (figura 2).

O material do armário 4 já havia sido quase todo catalogado pelo arquivista anterior, Monsenhor Guilherme Schubert (1913-1998), representando um desafio aparentemente menos complicado do que o quadro comum existente em acervos de manuscritos musicais. Além disso, os documentos estavam, na maior parte dos casos, razoavelmente limpos e coerentemente ordenados, em condições relativamente favoráveis em termos de conservação do suporte. Dizemos isto porque, pela nossa experiência com acervos de documentos do gênero, é comum encontrá-los sujeitos às piores condições imagináveis, atacados por pragas e outros agentes naturais, sem nenhum tipo de ordem ou identificação, além de estarem freqüentemente incompletos, misturados e fragmentados.

Por outro lado, o material disposto nos armários 1 a 3 encontrava-se totalmente desorganizado e em péssimas condições de conservação, além de não ter nenhum tipo de instrumento descritivo que nos permitisse conhecer o seu conteúdo. As figuras 3 a 5 mostram as precárias condições em que se encontravam aqueles documentos em julho de 2004, expostos a uma grande quantidade de poeira e detritos sólidos, afetados por agentes biológicos e variáveis ambientais inadequadas.



Figura 3 - armário 3 (julho de 2004).

Figura 4 - armário 3, prateleira 1
(detalhe, julho de 2004).

Figura 5 - armário 3, prateleira 4
(detalhe, julho de 2004).

Diante de tal quadro, o trabalho de higienização, acondicionamento e identificação – originalmente previsto apenas para os manuscritos e impressos musicais do período monárquico – foi estendido a todos os documentos, de modo a garantir condições mínimas de conservação que permitissem à totalidade do arquivo uma maior sobrevida. Sem dúvida, pela responsabilidade que nos coube, enquanto profissionais autorizados a realizar um tratamento do arquivo depois de décadas sem nenhum tipo de intervenção desta natureza, não poderíamos limitar nossa ação a uma fração do acervo.



Figura 6 - higienização dos documentos.

Figura 7 - frontispício impresso de cópia
manuscrita produzida pela Imperial Copistaria
de Música de Teotônio Borges Dinis.

A identificação dos documentos musicais no armário 4 ficou a cargo dos musicólogos André Guerra Cotta e Marcelo Campos Hazan, ao passo que o restante da documentação foi analisado, em caráter preliminar, pela pesquisadora Aline da Silva Goes, com o acompanhamento da equipe musicológica. Esta etapa permitiu-nos concluir que não havia no arquivo uma organização clara que refletisse a própria história do Cabido e da Sé-Catedral, o que nos pareceu inadequado do ponto de vista arquivístico.

Depois de um estudo das datas-limite e do histórico destas instituições, decidimos estipular a Proclamação da República como marco divisor para o estabelecimento de dois diferentes fundos documentais.1 Após a proclamação, a Capela Imperial transformou-se em Catedral Metropolitana, perdendo a subvenção governamental anteriormente assegurada pelo regime de Padroado e alterando significativamente suas relações e funções institucionais. Assim, estabelecemos um quadro de arranjo estruturado de acordo com a história do Cabido e da própria Catedral, instituição a que ele diretamente se liga: Fundo Capela Real e Imperial (até 1889) e Fundo Catedral Metropolitana (1890 até o presente). Dentro de cada fundo, a documentação foi organizada em duas seções: a Seção Musical, contendo manuscritos e impressos musicais, e a Seção Documentação Administrativa, incluindo correspondência, livros administrativos, publicações, recibos e outros documentos. A partir daí, chegamos ao seguinte quadro de arranjo,2 proposto para o encaixe de toda a documentação (quadro 1).



Quadro 1 - Quadro de Arranjo proposto para o Arquivo.

Por coerência ao escopo do projeto, originalmente restrito à Seção Musical do Fundo Capela Real e Imperial, o trabalho de levantamento foi realizado de forma diferenciada. Para a Seção Musical do Fundo Catedral Metropolitana, compreendendo obras recentes, em sua maioria já publicadas, foi elaborada uma listagem sumária contendo localização, título, compositor e data. Por sua vez, os documentos da Seção Documentação Administrativa do Fundo Catedral Metropolitana foram relacionados com sua localização, título, assunto ou conteúdo, estado de conservação, data e número de folhas ou páginas. O mesmo foi feito em relação ao material da Seção Documentação Administrativa do Fundo Capela Real e Imperial. Desta seção, em caráter excepcional, foram selecionados para digitalização e exibição no website aqueles documentos que se destacam por sua relevância histórica, sobretudo para a compreensão da produção musical e da atuação de músicos e compositores junto à Capela Real e Imperial. Pela mesma razão, também foram digitalizados dois documentos da Seção Documentação Administrativa do Fundo Catedral Metropolitana. Enfatizando-se o seu caráter preliminar, as três planilhas que resultaram da organização dos dados colhidos, respectivas a cada seção, foram entregues ao Arquivo do Cabido Metropolitano.

Quanto à Seção Musical do Fundo Capela Real e Imperial, cerne deste projeto, a classificação do material levou em consideração uma distinção prática e conceitual entre unidade musical e unidade documental. A utilização desta terminologia decorre, primeiramente, da percepção de que há limitações no conceito tradicional de obra, sobretudo na tradição da música sacra luso-brasileira, que se destaca pelo alto grau com que tais “obras” são inter-complementares e as seções destas permutáveis entre si (podendo, inclusive, conquistar vida autônoma). Esta flexibilidade advém do caráter eminentemente funcional do repertório, tanto em relação à sua gênese quanto ao processo de transmissão de “obras” musicais concebidas conforme os ditames da liturgia tridentina e os gostos, hábitos e necessidades locais. A aplicação da expressão unidade musical ao invés de “obra” ou “composição” é uma forma de assinalar esta particularidade, não verificada em tradições “centrais”, tais como o repertório instrumental austro-germânico.3 Segundo, a terminologia serve para apontar uma relação não necessariamente unívoca entre a unidade musical e o seu registro físico, a unidade documental.4 Por exemplo, é possível a existência de múltiplas unidades musicais sob o mesmo suporte documental, como é o caso da unidade documental CRI-SM04, que registra as unidades musicais UM004, UM005 e UM006.

As unidades documentais foram subdivididas em conjuntos homogêneos, compreendendo partituras, partes cavadas e/ou cartinas (solos anotados em partes especialmente elaboradas). A determinação dos conjuntos foi realizada de acordo com as características físicas do suporte e conforme as similaridades no processo de produção de cada documento, estabelecendo-se distinções entre caligrafias, datas, unidades musicais registradas, etc. Entretanto, algumas particularidades gráficas de certos documentos representaram um alto grau de dificuldade para o trabalho de individualização, pois se tratava, em alguns casos, de trabalho realizado não por um ou dois, como é comum, mas por vários copistas.5 Um estudo aprofundado deste trabalho colaborativo será de grande importância para a compreensão do modus operandi dos compositores e de seus colaboradores, mas também das copistarias de música fluminenses do século XIX, como é o caso da Imperial Copistaria de Música de Teotônio Borges Dinis (figura 7). Deste trabalho resultou a elaboração de uma Planilha de Unidades Musicais e outra de Unidades Documentais, sobre as quais foi estruturado este website.

Após as etapas de identificação, higienização e descrição os documentos da Seção Musical do Fundo Capela Real e Imperial foram integralmente digitalizados, e, em seguida, individualmente entrefolhados e acondicionados em caixas de papel alcalino, especialmente desenhadas para o acervo (figuras 8 e 9).



Figura 8 - caixa de papel alcalino para acondicionamento,
ao lado de embrulho de papel ácido, anteriormente utilizado.

Figura 9 - partitura acondicionada em caixa de papel alcalino.

A codificação das caixas e das imagens digitais baseia-se no arranjo dado. As caixas receberam uma numeração seqüencial dentro de cada seção, destacada em etiquetas externas que indicam também o código da unidade documental, como mostram os exemplos 1 e 2:



Exemplo 1 - etiquetas para as caixas 001 a 093 contendo, respectivamente, as unidades documentais CRI-SM01 a CRI-SM93 da Seção Musical do Fundo Capela Real e Imperial. Exemplo 2 - etiquetas das caixas na transição da Seção Musical para a Seção Documentação Administrativa do Fundo Capela Real e Imperial.

A numeração das caixas é seqüencial dentro de cada Fundo, mesmo passando da Seção Musical para a Seção Documentação Administrativa. Como já foi dito, apenas a documentação da Seção Musical do Fundo Capela Real e Imperial foi individualizada em unidades documentais. A codificação no exemplo 2 reflete este procedimento.

Observe-se que os manuscritos e impressos da Seção Musical do fundo Fundo Catedral Metropolitana são pouco numerosos e foram acondicionados em apenas duas caixas. Por este motivo, a Seção Documentação Administrativa inicia-se logo na caixa Cx003 (exemplo 3).



Exemplo 3 - etiquetas das caixas na transição da Seção Musical para a Seção de Documentos Administrativos do Fundo Catedral Metropolitana.

Exemplo 4 - etiquetas para os conjuntos da primeira unidade documental (CRI-SM01) da Seção Musical do Fundo Capela Real e Imperial.

Dentro de cada caixa, cada conjunto foi envolto em cartolina, sobre a qual foi afixada etiqueta com codificação também baseada no Quadro de Arranjo, como no exemplo 4.

Ao final do processo de acondicionamento, a documentação relativa ao Fundo Catedral Metropolitana foi armazenada nos armários 1 e 2, assim como os documentos referentes ao Fundo Capela Real e Imperial, nos armários 3 e 4. Noventa e cinco por cento de toda a documentação foi acondicionada, excetuando-se material muito recente e duplicado (Seção Documentação Administrativa do Fundo Catedral Metropolitana, a partir de 1950), que deverá ser objeto de intervenção futura. O foco principal do presente projeto, a Seção Musical do Fundo Capela Real e Imperial, foi totalmente higienizado, reorganizado e acondicionado, como mostra a figura 10.



Figura 10 - Seção Musical do Fundo Capela Real e Imperial, armário 4 do Arquivo do Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro (abril de 2005).

Neste DVD-ROM, portanto, pode-se visitar um acervo digital que reflete fielmente o arranjo dado, como se o pesquisador estivesse nas próprias dependências do Arquivo do Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro. Acreditamos, assim, que o presente projeto contribuiu tanto para uma maior acessibilidade, via fac-símiles digitais, como para a conservação do acervo propriamente dito, patrimônio cultural de inestimável valor para a memória musical brasileira.


1 Os conceitos de fundo e seção são aqui utilizados de acordo com a teoria arquivística, segundo a Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística – ISAD(G), do Conselho Internacional de Arquivos. Versão brasileira disponível na página do Arquivo Nacional.

2 A respeito desta terminologia, assim como dos princípios que norteiam a elaboração de um quadro de arranjo, ver BELLOTTO (1991: p. 89).

3 O conceito de unidade musical é relativamente recente na arquivologia musical e baseia-se no conceito de unidade musical permutável, tal como desenvolvido por CASTAGNA (2004: p. 90 e ss.).

4 Uma unidade documental consiste em um grupo de itens documentais (CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS: 2000, p. 05) que registram uma ou mais unidades musicais em comum e se complementam organicamente, em diferentes níveis, organizados cronologicamente, por copista ou impressor, por local, entre outros critérios possíveis, de acordo com as evidências fornecidas pelos próprios documentos. Assemelha-se ao que é, para a arquivística tradicional, o dossiê (CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS: 2000, p. 04).

5 Um exemplo disto é o conjunto 2 da unidade documental CRI-SM24, que mostra claramente títulos das partes e outros elementos escritos por José Mauricio Nunes Garcia, mas a cópia da música realizada por copistas diversos até o momento não identificados.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. São Paulo: T.A. Queiroz, 1991. 198 p.

CASTAGNA, Paulo Augusto. Níveis de organização na música católica dos séculos XVIII e XIX. In: Anais... I Colóquio Brasileiro de Arquivologia e Edição Musical, Mariana, 18 a 20 de julho de 2003. Mariana: Fundação Cultural e Educacional da Arquidiocese de Mariana, 2004. p. 79-104.

COTTA, André Guerra. O tratamento da informação em acervos de manuscritos musicais brasileiros. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000.

CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS. ISAD(G): Norma geral internacional de descrição arquivística. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2000.